Ler e Escrever o Mundo

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A ATIVIDADE PRÁTICA

A ATIVIDADE PRÁTICA
Vázquez, A. S. Filosofia da práxis. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, p. 193 e seg.
Como toda atividade propriamente humana, a atividade prática que se manifesta no trabalho humano, na criação artística ou na práxis revolucionária, é uma atividade adequada a objetivos, cujo cumprimento exige certa atividade cognoscitiva. Mas o que caracteriza a atividade prática é o caráter real, objetivo, da matéria-prima sobre a qual se atua, dos meios ou instrumentos com que se exerce a ação, e de seu resultado ou produto. Na atividade prática, o sujeito age sobre uma matéria que existe independente de sua consciência e das diversas operações ou manipulações exigidas para sua transformação. A transformação dessa matéria — sobretudo no trabalho humano — exige uma série de atos físicos, corpóreos, sem os quais não se poderia levar a cabo a alteração ou destruição de certas propriedades para tornar possível o aparecimento de um novo objeto, com novas propriedades. No trabalho, diz Marx, “o homem enfrenta como um poder natural a matéria da natureza. Põe em ação as forças naturais que formam sua corporeidade — os braços e as pernas, a cabeça e as mãos —para desse modo assimilar, em forma útil para sua própria vida, as matérias que a natureza lhe oferece”. Finalmente, o produto de sua atividade transformadora é um objeto material que subsiste independente do processo de sua gestação, e que, com urna substantividade própria, se afirma ante o sujeito, isto é, adquire vida independente da atividade subjetiva que o criou.
Nesse sentido, podemos dizer que a atividade prática é real, objetiva ou material. E assim, a nosso ver, a caracteriza Marx em suas Teses sobre Feuerbach ao empregar a expressão “atividade objetiva”. Marx ressalta o caráter real, objetivo, da práxis na medida em que transforma o mundo exterior que é independente de sua consciência e de sua existência. O objeto da atividade prática é a natureza, a sociedade ou os homens reais. A finalidade dessa atividade é a transformação real, objetiva, do mundo natural ou social para satisfazer determinada necessidade humana. E o resultado é uma nova realidade, que subsiste independentemente do sujeito ou dos sujeitos concretos que a engendraram com sua atividade subjetiva, mas que, sem dúvida, só existe pelo homem e para o homem, como ser social.
Sem essa ação real, objetiva, sobre uma realidade —natural ou humana — que existe independente do sujeito prático, não se pode falar propriamente de práxis como atividade material consciente e objetivante; portanto, a simples atividade subjetiva — psíquica —, ou meramente espiritual que não se objetiva materialmente não pode ser considerada como práxis.

Formas de Práxis

A matéria-prima da atividade prática pode mudar, dando lugar a diversas formas de práxis. O objeto sobre o qual o sujeito exerce sua ação pode ser:
a) o fornecido naturalmente, ou entes naturais;
b) produtos de uma práxis anterior que se convertem, por sua vez, em matéria de uma nova práxis, como os materiais já preparados com que trabalha o operário ou com que cria o artista plástico;
c) o humano mesmo, quer se trate da sociedade como matéria ou objeto da práxis política ou revolucionária, quer se trate de indivíduos concretos.
Em alguns casos, como vemos, a práxis tem por objeto o homem e, em outros, uma matéria não propriamente humana: natural nuns casos, artificial em outros.
Entre as formas fundamentais da práxis temos a atividade prática produtiva, ou relação material e transformadora que o homem estabelece — mediante seu trabalho — com a natureza)[1]. Graças ao trabalho, o homem vence a resistência das matérias e forças naturais e cria um mundo de objetos úteis que satisfazem determinadas necessidades. Mas como o homem é um ser social, esse processo só se realiza em determinadas condições sociais, isto é, no âmbito de certas relações que os homens contraem como agentes da produção nesse processo e que Marx chama com propriedade de relação de produção.
No processo de trabalho, o homem, valendo-se dos instrumentos ou meios adequados. transforma um objeto obedecendo a uma finalidade. Na medida em que materializa certa finalidade ou certo projeto, ele se objetiva de certo modo em seu produto. No trabalho — diz Marx — o homem assimila “sob uma forma útil para sua própria vida, as matérias que a natureza lhe oferece”, mas só pode assimilá-las objetivando-se nelas, ou seja, imprimindo na matéria trabalhada o cunho de suas finalidades. Marx aponta essa adequação a uma finalidade como um dos fatores essenciais do processo de trabalho: “Os fatores simples que intervém no processo de trabalho são: a atividade adequada a uma finalidade, isto é. o próprio trabalho. seu objeto e seus meios”.
Nessa caracterização do processo de trabalho, podemos falar de condições objetivas — a atividade do homem e as condições materiais do trabalho — representadas tanto pelo objeto do trabalho como pelos meios ou instrumentos com que se leva a cabo essa transformação. Contudo, essa divisão não pode ser considerada absoluta. Em primeiro lugar. o homem transforma o objeto obedecendo a finalidades, valendo-se de instrumentos que ele mesmo usa e fabrica, razão pela qual Marx diz que seu uso e fabricação “caracterizam o processo de trabalho especificamente humano”. Quando Marx reduz o instrumento de trabalho — condição material e objetiva do processo de trabalho — a trabalho humano, o instrumento aparece assim também humanizado, tanto por seu uso como por sua fabricação. Ë certo que essa humanização não pode ser concebida num sentido abstrato, antropológico, mas sim como expressão tanto de uma determinada relação entre o homem e a natureza somo das condições sociais em que os homens produzem (relações de produção). Por isso Marx diz: Os instrumentos de trabalho não são apenas o barômetro indicador do desenvolvimento da força de trabalho do homem, como também o expoente das condições sociais em que se trabalha”. Graças aos instrumentos, a relação entre o homem e a natureza deixa de ser direta e imediata. O aparecimento de instrumentos mais aperfeiçoados modifica o tipo de relação entre o homem e a natureza, e, nesse sentido, é um índice revelador do desenvolvimento de sua força de trabalho e de seu domínio sobre a natureza.
O poder de mediação do instrumento estendeu-se e elevou-se com a introdução da máquina até chegar à automatização, com a qual o homem fica separado radicalmente do objeto da produção. Mas quaisquer que sejam os instrumentos de que se valha para transformar a matéria conforme suas fina]idades, é, sem dúvida, o homem que os utiliza e fabrica, e é ele, em última instância, que se valendo deles atua sobre as matérias e as transforma de acordo com suas necessidades. O papel predominante dos meios de produção, acentuado por Marx, longe de eliminar a presença do homem concreto, como sujeito da produção, o revela inequivocamente. Mas essa presença se manifesta abertamente com o terceiro fator do processo de trabalho assinalado por Marx: seu caráter de atividade pessoal adequada a uma finalidade. Não se pode desconhecer o papel desse fator ao analisar o processo de trabalho, ainda que isso se faça para acentuar a natureza material das condições do processo de trabalho e o papel predominante dos meios de produção. Pode-se afirmar o caráter teleológico da atividade prática, material, que é o trabalho humano, sem que isso implique em fazer abstração da própria materialidade desse processo. 1 materialidade que não se reduz, por outro lado, ao objeto de trabalho e aos instrumentos materiais, mas que inclui também a própria atividade subjetiva do homem que enfrenta com seus instrumentos a matéria, já que no trabalho “põe em ação as forças naturais que formam sua corporeidade, os braços e as pernas, a cabeça e a mão...”
A práxis produtiva é assim a práxis fundamental porque nela o homem não só ‘produz um mundo humano ou humanizado, no sentido de um mundo de objetos que satisfazem necessidades humanas e que só podem ser produzidos na medida em que se plasmam neles finalidades ou projetos humanos, como também no sentido de que na práxis produtiva o homem se produz, forma ou transforma a si mesmo. “Ao mesmo tempo que desse modo atua sobre a natureza exterior a ele e a transforma — diz Marx em O Capital —‘transforma sua própria natureza desenvolvendo as potências que nele dormitam e submetendo o jogo de suas forças a sua própria disciplina”.
Outra forma de práxis é a produção ou criação de obras de arte. Do mesmo modo que o trabalho humano é transformação de uma matéria à qual se imprime uma determinada forma, exigida já agora não por uma necessidade prático-utilitária, mas por uma necessidade geral humana de expressão e objetivação. Na medida em que a atividade do artista não é limitada pela utilidade material que o produto do trabalho deve satisfazer, pode levar ao processo de humanização que — em forma limitada — já se dá no trabalho humano até suas últimas conseqüências. Por isso, a práxis artística permite a criação de objetos humanos ou humanizados que elevam a um grau superior a capacidade de expressão e objetivação humanas, que já se revela nos produtos do trabalho. A obra artística é, acima de tudo, criação de uma nova realidade, e posto que o homem se afirma, criando ou humanizando o que toca, a práxis artística — ao ampliar e enriquecer com suas criações a realidade já humanizada — é uma práxis essencial para o homem.
Como toda verdadeira práxis humana, a arte se situa na esfera da ação, da transformação de uma matéria que perderá sua forma original para adotar outra nova: a exigida pela necessidade humana que o objeto criado ou produzido há de satisfazer, A arte não é mera produção material nem pura produção espiritual. Mas justamente por seu caráter prático. realizador e transformador, está mais perto do trabalho humano — sobretudo quando este não perdeu seu caráter criador — do que de uma atividade meramente espiritual. Entre as formas de atividade prática que se exercem sobre uma determinada matéria é necessário incluir também a atividade científica experimental que satisfaz, primordial-mente, as necessidades da investigação teórica, e, em particular, as da comprovação de hipóteses. Essa forma de práxis é a que se manifesta quando o pesquisador atua sobre um objeto material modificando á vontade as condições em que se opera um fenômeno. Tal é o sentido da experimentação como práxis cientifica. O pesquisador produz fenômenos que são uma reprodução dos que se dão num meio natural, mas os produz exatamente para poder estudá-los num meio artificial — o do laboratório — sem as impurezas e perturbações com que se apresentam no meio natural e que, por essa razão, dificultam seu estudo. Quando se trata de produzir determinados fenômenos com ajuda do instrumento físico adequado, a atividade cientifica experimental é, evidentemente, uma forma de práxis. Trata-se de uma atividade objetiva que dá lugar a um produto ou resultado real e objetivo.
Nesse tipo de práxis a finalidade imediata é teórica. A experiência é levada a cabo para provar uma teoria, ou determinados aspectos dela. A experiência é feita atendendo a certas exigências teóricas com a finalidade de facilitar seu desenvolvimento. Uma determinada experiência — as realizadas em agronomia, por exemplo — pode ter conseqüências práticas, mas não diretamente, e sim através da teoria que procura comprovar.
Pois bem, a experimentação não é privativa da ciência; cabe falar também de uma atividade experimental em outros campos: artístico, educativo, econômico ou social. Nesses casos, à diferença da atividade experimental cientifica, a experiência não está a serviço direto e imediato de uma teoria, mas sim 4e uma forma específica de práxis; a experiência artística ou educativa tem por objetivo impulsionar a atividade prática correspondente — a arte ou a educação. Desse modo, vemos que enquanto na ciência a finalidade da atividade experimental é teórica — fortalecer ou impulsionar o desenvolvimento de uma teoria —, e, de modo imediato, serve portanto a determinada atividade prática, em outros campos a experimentação contribui para o desenvolvimento da práxis correspondente, mas de maneira direta e imediata: enquanto que seus resultados se aplicam na esfera prática adequada.
Tais são as formas fundamentais — se bem que não exclusivas — da práxis quando a ação do homem se exerce mais ou menos imediatamente sobre uma matéria natural —natureza imediata, ou natureza já mediatizada, ou trabalhada, que serve de objeto de um nova ação. Vejamos, agora, o tipo de práxis em que o homem é sujeito e objeto dela; ou seja, práxis na qual ele atua sobre si mesmo.
Essa atividade prática do homem oferece diversas modalidades. Dentro dela caem os diversos atos orientados no sentido de sua transformação como ser social, e, por isso, destinados a mudar suas relações econômicas, políticas e sociais. Na medida em que sua atividade toma por objeto não um indivíduo isolado, mas sim grupos ou classes sociais, e inclusive a sociedade inteira, ela pode ser denominada práxis social, ainda que num sentido .amplo toda prática (inclusive aquela que tem por objeto direto a natureza) se revista de um caráter social, já que o homem só pode levá-la a cabo contraindo determinadas relações sociais (relações de produção na práxis produtiva) e, além disso, porque a modificação prática do objeto não humano se traduz, por sua vez, numa transformação do homem como ser social.
Num sentido mais restrito, a práxis social é a atividade de grupos ou classes sociais que leva a transformar a organização e direção da sociedade, ou a realizar certas mudanças mediante a atividade do Estado. Essa forma de práxis é justamente a atividade política.
Nas condições da sociedade dividida em classes antagônicas. a política compreende a luta de classes pelo poder e a direção e estruturação da sociedade, de acordo com os interesses e finalidades correspondentes. A política é uma atividade prática na medida em que a luta que os grupos ou classes travam está vinculada a certo tipo de organização real de seus membros (instituições e organizações políticas, como são, por exemplo, os partidos); em segundo lugar, ainda que a atividade política seja acompanhada de um choque e contraposição de idéias, projetos, programas, etc., e essa luta ideológica exerça uma influência indubitável nas ações políticas reais, concretas, o caráter prático da atividade política exige formas, meios e métodos reais, efetivos, de luta; assim, por exemplo, o proletariado em sua luta política se vale de greves, manifestações, comícios e inclusive de métodos violentos. Em terceiro lugar, a atividade política gira em torno da conquista, conservação, direção ou controle de um organismo concreto como é o Estado. O poder é um instrumento de importância vital para a transformação da sociedade.
A práxis política pressupõe a participação de amplos setores da sociedade. Mas não se trata de uma atividade espontânea, ainda que nela se dêem atos espontâneos de determinados indivíduos ou grupos. Persegue determinados objetivos que correspondem aos interesses radicais das classes sociais, e em cada situação concreta a realização desses objetivos está condicionada pelas possibilidades objetivas inscritas na própria realidade. Uma política que corresponda a essas possibilidades e que exclua todo aventureirismo exige um conhecimento dessa realidade e da correlação de classes para não se propor ações que culminem inexoravelmente num fracasso. A luta tem que ser, por conseguinte, consciente, organizada e dirigida e a necessidade de levá-la a cabo dessa forma explica a criação dos partidos políticos.
Os partidos traçam, com maior ou menor consciência dos objetivos, possibilidades e condições, a linha de ação. Os métodos para transformar o ideal em real, isto é, para realizar na prática a linha política traçada por um partido constituem a estratégia e a tática. A estratégia assinala as tarefas correspondentes a uma etapa histórica geral, e a tática determina o modo de cumprir a linha política de um período relativamente breve. Estratégia e tática se relacionam dentro da linha política e de sua aplicação como o geral e o particular.
A práxis política, enquanto atividade prática transformadora, alcança sua forma mais alta na práxis revolucionária como etapa superior da transformação prática da sociedade. Na sociedade dividida em classes antagônicas, a atividade revolucionária permite mudar radicalmente as bases econômicas e sociais em que se baseia o poder material e espiritual da classe dominante, e instaurar assim uma nova sociedade. O agente principal dessa mudança é o proletariado, através de uma luta consciente, organizada e dirigida, o que pressupõe a existência de um partido que eleve sua consciência de classe e trace claramente os objetivos dessa luta, sua estratégia e sua tática, que organize as forças e as dirija.
Se o homem existe, enquanto tal, como ser prático, isto e, — afirmando-se com sua atividade prática transformadora em face da natureza exterior e em face de sua própria natureza, a práxis revolucionária e a práxis produtiva constituem duas dimensões essenciais de seu ser prático. Mas, por sua vez, uma e outra atividade, junto com as restantes formas específicas de práxis, nada mais são do que formas concretas, particulares. de uma práxis total humana, graças à qual o homem como ser social e consciente humaniza os objetos e se humaniza a si próprio.


[1]     “O trabalho é, em primeiro lugar — diz Marx —, um processo entre a natureza e o homem, processo em que este se realiza, regula e controla mediante sua própria ação, seu intercâmbio de matérias com a natureza” (O Capital, I, p. 130)